Nem a ficção foi capaz de elaborar uma história de amor com desdobramentos tão intensos. A arte até imitou a vida. No filme “Sempre ao seu lado” (2009), baseado numa história real, Hachiko, cachorro da raça Akita, espera incansavelmente, por anos, pelo retorno de seu dono em uma estação de trem japonesa, como sempre fazia, mesmo após a morte dele. Por tanta devoção e fidelidade, o animal ganhou uma estátua em Shibuya, no Japão, onde tudo aconteceu, há 100 anos, além de ter se tornado símbolo da relação afetuosa entre humanos e animais de estimação.
Fã do longa, a advogada Nathalia Cavicchioli Gil, de 33 anos, dona de Kyara, cadela da mesma raça de Hachiko, não conseguiu mais assistir ao filme após ela falecer no ano passado, em decorrência de um tumor na pata. O luto e a falta de compreensão de pessoas próximas a fizeram recorrer à terapia. “Me perguntavam: ‘Por que você ainda está desse jeito? Já era para ter melhorado’. Não entendem a dor. Só desabafava com a família”, conta, com a voz embargada. “Kyara era minha amiga, dói não tê-la. Não consigo falar dela sem chorar”, lamenta Nathalia.
Para Fabiana Witthoeft, psicóloga especialista em lutos, perdas e transições, a tragédia com as enchentes e mortes no Rio Grande do Sul e a mobilização para resgatar animais são retratos fiéis de como os pets estão integrados às novas configurações familiares. Contam, também, o tempo de convivência e os momentos marcantes e cheios de amor vividos ao lado deles.“Por mais que isso esteja mudando, ainda é um luto não compreendido, porque existe quem não valorize os animais, como se eles fossem algo menor. Há quem invente histórias, por vergonha, para explicar a tristeza. Por isso a importância de expor, falar e validar essa situação”, justifica.
Considerada filha pela artista plástica Rita Borges, de 61 anos, a cadelinha Marylice, de 19, teve uma despedida à altura por retribuir à “mãe” tanto carinho. No velório, usava vestido e véu, e em seguida, seu corpo foi cremado. Hoje, suas cinzas descansam em um altar na sala de casa. “Foi algo inexplicável, um vazio grande. Encomendei uma pelúcia parecida com ela. Falam que a gente humaniza os bichos, mas na verdade, são eles que nos humanizam. Estou até perdida, porque adaptava minha vida a ela, saía apenas para lugares em que ela poderia ir”, diz.
Veterinária de Marylice, Larissa Paladino, de 41 anos, brinca ao dizer que também é um pouco psicóloga. “Às vezes, tenho que cuidar mais do humano do que do bicho.” Acostumada a lidar com a partida de seus pacientes e a realizar eutanásias nos casos em que tratamentos já não funcionam e o pet está em sofrimento, a profissional conversa com os donos, deixando-os à vontade para tomar decisões sem culpa. O sentimento, porém, é recorrente e atrelado às perdas.
“A gente sempre acha que podia ter feito mais. Consideramos a morte, na maior parte das vezes, um fracasso. É preciso lembrar o que deu certo, os cuidados que você teve com o animal”, pontua a psicóloga Fabiana Witthoeft. Mesmo assim, nada foi capaz de blindar Larissa dos efeitos do adeus à gatinha Catarina, há sete meses, após 17 anos de união. “Ela tinha problema renal, a síndrome do intestino inflamado… achei que estava ‘evoluída’ e preparada para quando chegasse a hora. Não foi nada disso, a saudade é grande e ainda choro todos os dias”, conta.
Há quem procure uma solução rápida para aliviar a dor e cobrir o vazio, como adotar outro pet. A atitude, porém, deve ser bem pensada, pondera o psiquiatra e psicoterapeuta Saulo Ciasca, da USP. “Nenhum novo bichinho substituirá o anterior, porque eles terão personalidades diferentes, mas podem ajudar a amenizar a solidão”, fala. Sejam amigos humanos ou novos pets, no fim da história, o mais importante é encontrar quem realmente esteja ao seu lado, sem julgamentos, para atravessar o período de forma menos dolorosa. “Atos como abraçar, chorar junto e estar presente são mais significativos do que palavras. A dor pode não passar nunca, mas é importante seguir vivendo e se permitir novas experiências de vida”, finaliza Saulo.
Fonte: O Globo